Costumo dizer, brincando, que me considero “jurássica”, quer pelo DNA (Data de Nascimento Antiga); quer por estar casada com o mesmo homem, a quem conheci aos meus 14 anos de idade; quer por nunca ter beijado outro homem, e, mesmo assim, considerar-me feliz e realizada; quer por ainda exercer uma profissão muito pouco valorizada, a Assistência Social, através da qual tenho vivenciado experiências incríveis e que me fizeram crescer como ser humano!
E é sobre uma dessas experiências, que tem ocorrido neste início de milênio, a que me refiro neste depoimento. Nada como voltar ao passado para melhor entender o presente!
No início de minha carreira como Assistente Social, toda a minha formação foi na área da deficiência intelectual, à época denominada deficiência mental. Era uma época em que mães de crianças com autismo eram chamadas de “mães geladeiras” e pais de crianças com deficiência mental eram considerados “neuróticos” e incapazes de educar seus filhos. Porém tive a felicidade de trabalhar ao lado de especialistas de várias áreas, em diversos setores da entidade, em equipes multidisciplinares que discutiam semanalmente os casos avaliados para se chegar a um diagnóstico e encaminhamento, geralmente sob a responsabilidade das Assistentes Sociais. Graças a esta dinâmica, adquiri conhecimentos e uma visão muito ampla, que me permitiu, posteriormente, criar programas inovadores e alçar vôos nunca antes imaginados!
Desde meados da década de 60 a entidade oferecia estágio para médicos que quisessem se especializar em neurologia e psiquiatria infantil, recebendo inclusive profissionais de outros estados. Recebemos um médico que veio do Amazonas com toda a família e que pouco depois foi contratado pela instituição. No final da década de 70, este psiquiatra, um profissional com P maiúsculo, atencioso, prestativo, a quem recorríamos em busca de auxílio quer para atendimento a alguma criança ou a seus pais, apareceu com sintomas estranhos. Ouvia-se pelos corredores um zum-zum-zum! Ele faltava com frequência, emagreceu muito e começou a apresentar umas feridas estranhas na pele! Quase nada se conhecia sobre o que lhe estava acontecendo, ou como a aids era transmitida, motivo pelo qual não tive a coragem de me aproximar ou visitá-lo. Creio que poucos colegas o fizeram. Afastou-se silenciosamente e silenciosamente faleceu, deixando uma jovem esposa e dois filhos pequenos!
A minha vida pessoal e profissional continuou, com grandes mudanças: filhos crescendo, saindo de casa, morando em outros países, casando e me dando netos; saída da instituição, trabalhando em vários projetos voltados ao novo paradigma da inclusão na área das deficiências; e todo esse episódio estava meio esquecido, até que Marta Gil, do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas convidou-me para participar de projetos sobre o tema da interface entre deficiência e aids, juntamente com Fernanda Sodelli.
Esses projetos me permitiram conhecer melhor o universo de pessoas que vivem com HIV/aids, como Beto Volpe, Bia Pacheco, Cida Lemos e outros grandes ativistas que lutam por melhores condições de vida para todas as pessoas vivendo com aids, algumas delas já com deficiência causada por doença oportunista ou em conseqüência dos antiretrovirais. Também possibilitaram a minha aproximação com populações contra as quais tinha algum preconceito, como travestis, transexuais, bem como travar conhecimento com profissionais dedicados nessa área, como Marcos Veltri, Mariana Benny, Caio Westin, Érika Pisaneschi, Andréa Duarte Lins, Ivana Drummond, Marta e Solange do CTA Dr. Sérgio Arouca, e tantos outros que lidam cotidianamente oferecendo acolhimento e apoio a essas pessoas! Agradeço a todos eles pelos novos conhecimentos adquiridos e pelas emoções vivenciadas com suas falas e atitudes! Enfim, sinto que a participação nessa nova área, antes desconhecida, permitiu que me redimisse ante meu amigo, por não ter lhe oferecido um apoio quando mais necessitava! Mina Regen (
minaregen@uol.com.br)
Descrição da imagem: Foto de Mina Regen (ao centro) junto com jovens no Evento de João Pessoa.