Eu sempre acreditei em Deus, herança familiar. O problema é que eu não me encaixava em nenhuma religião, eu não tinha muito jeito com os protocolos, liturgias e até mesmo as animadas giras não conseguiam minha adesão. Mesmo porque as religiões, quase todas, também não tinham muito jeito com minha sexualidade. Ao mesmo tempo Armstrong dava o primeiro passo humano na Lua enquanto eu, jovem, jurava que seria um astronauta. Eu via Deus no Big Bang e para mim os milagres estavam restritos aos nossos primeiros passos como civilização, com os gafanhotos e os primogênitos. E Ele nos deu o raio do livre arbítrio! Ele já tem coisa demais pra manter em ordem, até Universo Paralelo já tem demonstrado!!!
E em 15 de outubro último, em uma consulta de acompanhamento de tumores já tratados no hospital A.C.Camargo em Sampa, surpresa! Um tumor avançado no reto, ânus e um linfonodo no abdômen.
- Como assim, doutor? Tudo isso? De onde veio?
Ao que o Dr. respondeu tentando me deixar o mais relaxado possível:
- Senhor Luiz, isso é uma recidiva. Esse exame, o petscan, detecta até as menores alterações e aqui apresenta toda a circunferência de seu reto comprometida. Vamos ter que fazer biópsias em uma pequena cirurgia, mas que precisará internação e centro cirúrgico. O senhor consultará o anestesista e retornará para marcarmos as biópsias.
E eu, escorregando meu corpo cada vez mais amolecido pela cadeira:
E... Doutor, caso as biópsias venham positivas, qual o tratamento, outra radioterapia?
- Pois é, seu Luiz. No seu caso, como é uma recidiva, a única alternativa é a retirada do reto, do ânus e instalação de bolsa de colostomia definitiva. E quimioterapia na seqüência.
- Mas, doutor, não existe a possibilidade de outro diagnóstico?
- Uma outra possibilidade é a de ser uma grande inflamação, que tenha sido confundida no exame. Mas é muito difícil.
Àquela hora tudo rodava... Não sei como não caí da cadeira, nada fazia sentido. De repente, assim, eu teria mutilada parte tão significativa para qualquer pessoa, ainda mais para mim que tenho ali parte de minha sexualidade. Já não conseguindo segurar as primeiras lágrimas, encontrei meu amigo Edson que me levaria de carro para São Vicente, onde teria a hercúlea tarefa de omitir os detalhes sórdidos de meus pais. E, primeira providência: convocação geral de tias, primos, amigos, conhecidos, evangélicos, umbandistas, bruxos, católicos, espíritas, ateus... Que todos emanassem a palavra de ordem INFLAMAÇÃO. Ao que fui imensamente correspondido muito graças a Claudinho, meu irmão de fé. Mas eu estava com medo e me flagrei sentindo os mesmos que eu procuro retirar das pessoas com HIV que me procuram ainda desorientadas: “Será que vou ficar mais vulnerável a doenças? Alguém irá me desejar novamente? Vou namorar? Cara, todo mundo vai ficar olhando!” É estranha essa “bipolaridade” de minha vida, sempre me jogando de um extremo ao outro, às vezes simultaneamente. Enfim, mais equilibrado e com a liberação do anestesista, alguns dias depois retornei ao meu proctologista para marcar a cirurgia:
- Doutor, eu não vou pedir que o senhor me fale em números, mas qual seria a possibilidade dessa coisa ser uma inflamação, e não um tumor?
- Senhor Luiz, a hipótese de inflamação está restrita à área do ânus, por causa da radioterapia que o senhor fez. Agora, o seu reto está bastante comprometido por uma série de linfonodos, o exame foi bem claro nesse sentido. Lamento.
Bem, havia sido dado o sinal para eu começar a usar uma de minhas estratégias de defesa, a zona de conforto. Comecei a viajar em bolsas de colostomia de marcas francesas, com folhinha de maconha, arco íris, toda uma linha de customização. Isso tranqüiliza um pouco o espírito, dá pra raciocinar melhor sobre o que fazer e selecionar com calma o que ler e a quem dar ouvidos. E, quando dei por mim, já estava ambientado na futura realidade, e também recebendo ‘boas vindas’ de grandes amigos do movimento de pessoas com deficiências. Ao mesmo tempo também havia sido dado o sinal para contar toda a verdade para meus pais, eles também tinham o direito de se preparar para ver o filho sair de uma sala de cirurgia sem um pedaço, mesmo que oculto. E esse momento me foi tão doloroso quanto em 1989, quando revelei o diagnóstico de HIV para minha família, com aquela única lágrima de minha mãe que não secou até hoje em meu coração, a forma pragmática com que meu pai encarou a situação e meu irmão.... Ai, meu querido e saudoso irmão...
Chega, enfim, 05 de novembro e eu levanto, inexplicavelmente, com muito frio. Chegando ao hospital fui deitando e o enfermeiro constatou o porquê: 38,5 graus de temperatura, impeditiva para a cirurgia. Após muito custo a febre baixou e lá fui eu para o centro cirúrgico e apaguei. E, ufa, acordei. Rodeado de pessoas tão zonzas quanto eu, logo comecei a brincar com as enfermeiras, com o pessoal que já tava acordando até que chegou minha hora de ir para o quarto. Lá chegando, Edson, Luiz e Consuelo estavam me esperando, todos com sorrisos de orelha a orelha. Também sorri e perguntei o porquê de tanta alegria.
- O doutor veio aqui assim que terminou sua cirurgia, disse que você desceria dali a duas horas e nos informou, surpreso, que não havia localizado nenhum sinal de anormalidade e que só haviam encontrado inflamação. E que não vai ser mais necessária a mutilação e nem a bolsa de colostomia. Só procedimentos para o abdômen.
Chico Buarque disse, um dia: “Por que me tiraste do abandono, quando eu estava bem morto de medo?” Eu já estava tão confortável com as novas perspectivas... E chega essa agora? Havia consultado alguns amigos médicos meus, sumidades em suas áreas, e a concordância com o diagnóstico havia sido unânime! E toda essa certeza científica virou nada? . Ainda atônito eu já não conseguia segurar as lágrimas, festejamos um bocado, abraçamo-nos rindo e chorando ao mesmo tempo. Mas... Será que eles entenderam direito? Será que já foi tudo examinado? Será que eu ainda tô doidão na recuperação? Será que eu morri? E graças à Santa Dipirona das Dores eu apaguei e acordei somente no dia seguinte, quando o medico confirmou cada informação que havia me sido passada: surpreendentemente não havia nenhum sinal de lesão, que foram biopsiados vários sítios e que havia apenas uma grande inflamação. A retossecção e colostomia estavam canceladas. Aí, sim, eu desmontei. E comecei a chorar de alegria tudo aquilo que não chorara de tristeza em minha zona de conforto. Após me recompor um pouco, disparei:- Como assim? Sumiu? Ele estava lá!
- Pois é., seu Luiz Não está mais. O doutor Wilson irá lhe detalhar melhor em consulta semana que vem, onde será agendada a cirurgia para o linfonodo do abdômen, que também é relacionado ao reto. Esse vai precisar abrir um pouco sua barriga e passar por quimioterapia.
- Se o tumor estiver lá, não é doutor? – não resisti, com um sorriso irônico.
Confesso, ainda estou absolutamente tonto com essa situação. A única coisa que houve entre os dois diagnósticos contraditórios, foi um tsunami de orações, preces, mentalizações, emanações, vibrações e trabalhos. Gente de todo tipo e todo canto pedindo pela minha saúde. Não tenho noção da mudança que esse episódio irá promover em minha vida pessoal, em minhas lutas, em minha relação com o mundo. Só sei que não se passa incólume a ter uma experiência destas. Mas, tenho certeza, será mais uma mudança positiva conseqüência de uma adversidade.
Eu acredito em Deus e em todos os Seus deuses e deusas,
Eu acredito no Big Bang e também em Milagres.
Hoje eu tenho a alegria de ser testemunha de um!
E agradeço a todos e todas que participaram desse Coquetel de Fé. Beto Volpe